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sábado, 14 de março de 2015

POR: SEBASTIÃO DIÓGENES - QUANDO O FACÍNORA CHOROU




 
Dr. Sebastião Diógenes - Médico e Tesoureiro da Sobrames-CE
Quando o facínora chorou

    No vale do rio das Onças nasceu e se criou Iralfonso, que viria a ser um famigerado facínora. Nesse lugar perigoso, onde os homens praticavam atrocidades com reputação de valentia, não escapou a Iralfonso a medieval cultura dos seus ancestrais. Cometeu o primeiro delito de sangue aos dezesseis anos de idade. A vítima foi o bem-querido gato da casa da namorada. Com o mesquinho propósito de mostrar as armas que ganhara do pai, descarregou o revólver no pobre animal, e, em seguida, sangrou-o com o punhal de cabo multicolorido. Uma selvageria sem medidas, tudo o fez com a crueldade dos facínoras. A atitude inesperada e violenta do jovem causou pânico naquela pacata família. Sensatos e cautelosos, os pais da mocinha solicitaram ao delinquente que se lhe retirasse do lar. Tiveram a fortuna de ser atendidos. Foi a última vez que o viram, porque a família, apavorada, logo mudou-se para a Capital.
            O assassínio do doméstico animal da Felidae família foi, para as gentes do vale, o augúrio do nascimento de um novo pistoleiro na região. Não demorou a confirmação do mau presságio. O primeiro crime contra a vida de uma pessoa aconteceu em uma vaquejada, que valia prêmios. O boi, que Iralfonso puxara pelo rabo, caiu com as patas fora da faixa regulamentar, o juiz não lhe atribuiu o ponto, e o locutor gritou para o público: “Não valeu o boi”. Transtornado com a desclassificação na competição, o assassino travestido de vaqueiro dirigiu-se ao palanque do juiz, e matou-o com seis tiros de revólver. Seguindo uma continuada prática na região, Iralfonso refugiou-se por ali mesmo, que para serviço de morte não faltaria o amparo de homiziadouros e bacharéis do ramo.
            Iralfonso contava um ativo de mais de duas dezenas de mortes, das quais seis em uma chacina, quando foi preso pela terceira vez. Os mandantes não se preocupavam com a sua detenção, ele tinha a fama de não abrir a boca, não nomeava a autoria intelectual do homicídio, nem sob tortura. O sigilo era-lhe a marca registrada do impiedoso ofício. Tornou-se o executante de confiança, o preferido.
            O celerado foi preso várias vezes, logo ganhava a liberdade pelas brechas da lei, que a justiça sempre encontrava. Todavia, foi julgado e condenado à pena máxima por um dos crimes de maior repercussão. Tinha, porém, privilégios no cárcere: cela especial com geladeira, micro-ondas, televisão, cama e banheiro. Recebia com regularidade visita íntima da mulher, casados havia cinco anos, por quem mantinha uma atormentada paixão. Jovem e livre de inibições, a sedutora esposa despertava a concupiscência por onde passava. Preocupações e ciúmes passaram a atormentar o espírito de Iralfonso. Ainda não tinham filhos, lamentava consigo mesmo, a maternidade poderia ser um freio às glândulas da mulher.
            Cumpria o quinto ano de reclusão, um sexto da pena, quando Iralfonso recebeu a notificação da liberdade condicional por bom comportamento. Ele não acreditava nessa história de bom comportamento na prisão. Sabia que, por trás dessa liberdade, havia gente de poder necessitando dos seus funestos obséquios, e aguardava com ansiedade a visita do agenciador. 
            Apesar de sempre ter desejado a liberdade, até tentativas de fuga havia planejado,  Iralfonso não esboçava a ínfima alegria com a notícia que logo deixaria a prisão. Estava muito amargurado com as ausências da mulher. As visitas rareavam, havia um ano, e contava três meses que não comparecia à casa de detenção, nem dava notícias. O ciúme era o único tormento que lhe afligia a alma, sentia-o de forma intolerável e incontrolável. Encontrava-se absorto nessas reflexões, e tomado de uma tristeza profunda, quando o agente carcerário lhe anunciou, com intimidade:
            - Visita pra você, seu Ira!
            Não indagou de quem se tratava, esperava que fosse a mulher. Claro, só poderia ser ela, embora estivesse sumida por todos esses meses. Talvez existisse uma justificativa convincente para tanto desprezo, uma doença grave, por exemplo, ou quem sabe, razões outras alheias à sua vontade, imaginava Iralfonso, que somente agora a pobre mulher pôde se apresentar para as honras do matrimônio. Ora, ora, só poderia ser isso mesmo, mulher de cabra-macho não faz besteira, conjeturava, e a ideia de fidelidade conjugal se lhe esboçava na mente, quando lhe despertou uma voz grave:
            - Com licença seu Iralfonso – e foi entrando na cela especial o agente de negócios do matador por encomenda. – Tenho um servicinho pra você fazer. É gente de poder e muito dinheiro. O futuro finado também é gente graúda. Por isso você vai deixar a cadeia, porque o serviço exige qualidade e muito segredo.
            - Pra quando é o serviço? – perguntou Iralfonso, com visível apatia.
            - É pra já, é tarefa de certa urgência, deve ser executada logo que você saia daqui.
            Iralfonso ficou calado, pensativo, com a fisionomia de quem estava com profundo sofrimento da alma, parecia um ser arrependido dos bárbaros crimes. O agenciador logo percebeu o estado de desânimo e tristeza do matador, e inquietou-se:
            - Qual é a sua, cara, tá roendo a corda?
            - Estou com coisas na cabeça – respondeu-lhe o matador. – Desconfio que a minha mulher anda me traindo. Você sabe de alguma coisa?
            O agente da associação criminosa procurou desconversar, que não sabia de nada, não tinha o costume de dar ouvidos às fofocas.
            - A verdade ou não faço o serviço! – sentenciou Iralfonso.
            - É verdade, sim! – respondeu secamente o agente. - Inclusive ela está grávida, vive amancebada com o seu primo, o Wilgerson. O pior da história é que a desmiolada não sabe sequer quem é o autor da barriga.
            Iralfonso ficou paralisado, pensativo, e com o olhar perdido no chão que lhe acolhia as pontas dos cigarros, fumados com desespero.  Após um longo pensar, levantou a cabeça, fungou o nariz encharcado, e surpreendeu o agenciador com a inesperada decisão.
            - Acho que vou largar essa mulher!...
            Iralfonso saiu da prisão, cumpriu o último serviço de encomenda e nunca mais se teve notícias dele. Alguns diziam que foi vítima de queima de arquivo, outros afirmavam que a vergonha insuportável lhe modificou o caráter, virou pastor evangélico em longínquas terras da Amazônia. Poucos meses depois, a mulher por ele repudiada, porém, cuidada com regalo pelo primo Wilgerson, e livre de necessidade, pariu um supermenino com três baguinhos. Causou grande alvoroço na redondeza a novidade congênita que se mostrava entre as perninhas do infante.  As mulheres arrazoavam entre si: algumas diziam que o menino era a cara do Iralfonso; outras, achavam-no uma gracinha, “Tá na cara que é do primo dele, é o danado do Wilgerson na pintura!”, exclamavam com convicção. Neste entretanto, dezessete mulheres que tiveram vinte e sete filhos com o primo Wilgerson, juravam pelo conteúdo dos sacos, às gargalhadas, a quem o menino puxara.
Sebastião Diógenes.
14-02-2015.




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