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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

POR: CELINA CÔRTE PINHEIRO - NÓS E OS "MICRÚSCULOS"

Dra. Celina Côrte - Médica  Presidente da Sobrames-CE

NÓS E OS "MICRÚSCULOS"
                                                                Publicado no Jornal "O POVO" em 05/02/2016

No Brasil, enquanto o Aedes aegypti agia como transmissor do vírus da dengue, ações preventivas foram débeis e descontinuadas. Embora a doença pudesse acarretar distúrbios graves, até óbitos, foi subestimada pelos governantes.

Intervenções públicas pontuais, sobretudo nos períodos chuvosos e quentes, quando o mosquito encontra condições mais propícias para sua proliferação, bem como o aumento estatístico de pessoas afetadas pela dengue, revelavam, ano a ano, a ineficácia dos parcos programas. Nenhuma medida ostensiva, educativa e continuada para controle do vetor.

Ao revelar seu poder também como transmissor dos vírus chikungunya e zika, este último com repercussão grave sobre fetos, percebeu-se a magnitude do transtorno, agora já reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como emergência mundial. Encontramo-nos diante do antigo impasse em que seres “micrúsculos” podem nos dizimar ou, no caso, dar origem a crianças microcéfalas, com repercussões imprevisíveis.

Embora menos onerosas, medidas preventivas nunca foram prioritárias no País, por não assegurarem visibilidade política e outras vantagens em curto prazo. O Ceará não é exceção, com vários municípios ainda privados de saneamento básico adequado e suas implicações. Na Capital, é fácil perceber quão distantes nos encontramos da prevenção, até mesmo de simples verminoses. Convivemos com potenciais criadouros do mosquito, alimentados pelo lixo que a população mal orientada atira a esmo no meio ambiente. Deste, temos a obrigação de ser aliados e não inimigos.

A melhor e única medida protetiva contra o Aedes ainda é a prevenção. Conforme recomenda a Fiocruz, basta dedicarmos dez minutos semanais para identificação e eliminação dos possíveis criadouros do mosquito transmissor em nossos domicílios. Dos gestores, espera-se que saiam de sua procrastinação e estabeleçam programas bem planejados e eficazes de controle do mosquito. Aliemo-nos, como rigorosos fiscais de nós mesmos, e confiemos no empenho científico exitoso.

Celina Côrte Pinheiro
celinacps@yahoo.com
Médica pela USP, especialista em Ortopedia e Traumatologia e presidente da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores -Regional Ceará (Sobrames-CE)

CONVITE LANÇAMENTO DE LIVRO : MARCELO GURGEL


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

POR: SERGIO MACEDO - ALMA / tempo em atraso

 
ALMA/ tempo em atraso

Ela não me disse nada,
silêncio de sepulcros,
alma aprisionada ao universo.
E eu só queria que ela voltasse um pouco,
se sentasse em um cadeira de balanço,
nesse vento gostoso da manhã, conversasse comigo,
mas ela não suportou e foi embora, deixando-me órfão de emoções.
Sua cadeira de balanço, que nunca uso, vazia, tem nome de tédio.
O vento de todo o dia,
Vazia, balança a cadeira,
Como se alentasse meu ser
Em sua ausência.
Em seu lugar, também
Seria refém do universo,
Tirana prisão,
Largaria de mão quem não percebe
A luta ou não a quer
Deixaria de lado o centurião fugidio
Mataria todos os deuses do depois,
Do depois sem solução,
Do depois, inevitavelmente dos soluços.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

POR: MARCELO GURGEL - ANTERO COELHO NETO : uma perda muito sentida


ANTERO COELHO NETO: uma perda muito sentida
Antero Coelho Neto nasceu em Fortaleza em 11/06/1931.
Graduou-se em Medicina em 1957, pela Universidade Federal do Ceará (UFC), como o melhor aluno da turma.
Foi Residente em Cirurgia da Casa de Saúde São Miguel, no Rio, em 1958. Em 1961, obteve a Livre-Docência em Cirurgia na Faculdade de Medicina da UFC.
Foi Research Fellow in Surgery do Massachusetts General Hospital, e do Albert Einstein Medical Center, nos EUA.
Admitido no corpo docente da Faculdade de Medicina da UFC, em 1959, aposentou-se em 1992, como Professor-Adjunto IV, tendo exercido diferentes e relevantes atribuições acadêmicas.
Licenciou-se da UFC, de 1967 a 1972, para assumir o cargo de professor da Universidade de Brasília, ao nível de Titular, retornando à Fortaleza, para implantar a Universidade de Fortaleza, da qual foi Reitor, de 1973 a 1979.
Como expert na temática “Qualidade de Vida e Longevidade”, era amiúde solicitado a participar, como expositor, em cursos de especialização. Ministrou mais de uma centena de cursos em diferentes países.
A sua produção impressa de artigos e livros o posicionava entre os principais polígrafos do Ceará. Como polímata, foi responsável por cerca de quatrocentas conferências, palestras e trabalhos apresentados em congressos, seminários, workshops.
A experiência internacional, auferida como Consultor da Fundação Kelloggs, contribuiu para que viesse a ser contratado pela OMS/OPAS, organismos integrantes da ONU.
Do seu currículo, com cerca de dois mil títulos, identifica-se um excepcional elenco de consultorias e elaboração de projetos em Saúde, Educação, Recursos Humanos, Desenvolvimento Institucional, Planejamento e Qualidade de Vida.
De regresso à Fortaleza, já aposentado da OMS/OPAS, focalizou o seu empenho investigativo no campo da Qualidade de Vida, com especial referência à longevidade e à saúde do idoso.
Nas últimas três décadas, ele deu guarida à figura do educador comunitário e do homem da comunicação, engajado no esforço de propiciar ações educativas, com vistas à melhoria da qualidade de vida e de uma vida saudável às pessoas. Nesse aspecto, foi articulista regular de O Povo, produzindo artigos de opinião de intangível valor social.
Presidiu a Academia Cearense de Medicina e pertencia à Sobrames/CE, sendo um aclamado vate.
Sua partida deste mundo menor, ocorrida ontem (18/01/16), deixa uma lacuna imensa no Ceará, que perde um dos seus mais talentosos cidadãos.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Da Academia Cearense de Medicina e da

Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional Ceará

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

SOBRAMES-CE DE LUTO - FALECEU O SOBRAMISTA ANTERO COELHO NETO

Dr. Antero Coelho Neto

Fonte: Jornal "O POVO" 18/01/2016
O médico cearense, professor universitário, articulista do O POVO, escritor e criador do programa de rádio "Novas Dimensões", Antero Coelho Netomorreu, aos 84 anos, na madrugada desta segunda-feira, 18, em Fortaleza. Doutor Antero estava internado por conta de uma fratura no colo do fêmur, mas teve uma infecção generalizada, agravada após Acidente Vascular Cerebral (AVC). A missa de corpo presente será realizado às 14 horas, no Jardim Metropolitano, e o sepultamento está programado para às 15 horas. 

Segundo o médico sanitarista Marcelo Gurgel, Antero deixa um legado intelectual, científico e educacional para a Medicina cearense. "Era um dos médicos mais influentes do Ceará, com projeção internacional. Era um exemplo para o Brasil. Foi o pioneiro nos estudos de transplante renal e diziam que era um dos melhores alunos na época da faculdade. Participou como consultor da criação do curso de Medicina da Uece, além de ter tido um papel importante no início do SUS" ", lamentou o amigo. 

"Era uma pessoa de ótima convivência e um excelente colaborador da Rádio Universitária. Ele fez um trabalho muito importante na dimensão educativa do rádio. O Novas Dimensões tinha esse caráter de educar para a saúde, um programa muito criativo e bem dialogado, aberto ao relacionamento com o público, sempre discutindo temas importantes para a saúde da população", explicou o diretor da Rádio Universitária FM, Nonato Lima. 

Doutor Antero criou e passou a apresentar o ''Novas dimensões'' na Rádio AM do POVO, na década de 90. Após 370 edições na emissora, o programa foi levado à Universitária FM com o nome "Novas Idades", que estimulava uma vida ativa, criativa e saudável para pessoas idosas. Depois de 370 outras edições, o programa voltou a se chamar "Novas Dimensões", misturando informações e debates sobre Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Odontologia e Farmácia com foco em todas as faixas etárias e tipos de público.

Segundo Nonato, mesmo com a ampliação do programa para outras áreas de saúde, Antero continuava sendo colaborador assíduo da rádio. "Ele não participava mais todo sábado por conta da saúde debilitada, mas foram anos fazendo ao vivo, em cada sábado do ano", relembra.

Saúde debilitada
De acordo com Marcelo, doutor Antero foi internado no hospital São Raimundo há 45 dias, pois apresentava sinais de desorientação. Ele se recuperou e voltou para casa, mas fraturou o colo do fêmur, sendo internado no hospital São Carlos, cerca de 10 dias atrás.

"Não foi operado porque teve uma pneumonia e, depois, veio o quadro de septicemia [infecção generalizada] que foi se agravando. Ele estava sendo tratado com antibióticos, mas teve um AVC e uma piora no quadro de saúde", relatou ao O POVO Online.

"É importante amar, amar e amar" 
Antero foi entrevistado nas Páginas Azuis do O POVO, em março de 2007, quando falou sobre a relação entre qualidade de vida e longevidade. Médico-poeta, ele dizia que a família e o poder público não estavam preparados para lidar com a quantidade de pessoas idosas que vem crescendo no País. 

"A mulher é mais responsável com seu corpo, tem mais religiosidade, a sexualidade da mulher é objetivando o amor. O homem tem de mudar. Por isso, eu brinco dizendo que cada vez mais exercito meu lado feminino", contou. 

"Há um provérbio popular muito antigo que diz: mudar é difícil, é preciso um grande amor ou uma grande dor. Como por exemplo, 80% dos que sofrem infarto do miocárdio deixam de fumar depois da dor do infarto", explicou na entrevista.
Quando perguntado sobre qual mensagem o poeta deixaria para as pessoas sobre a qualidade de vida, ele  foi categórico: "amar". ''O poeta diria que para ter uma boa qualidade de vida é importante amar, amar e amar. E quando estiver cansado de amar, amar mais. Não estou falando de amor ao sexo oposto, mas o amor às pessoas, à sua vida, ao meio ambiente em que você está. Amar as coisas que você faz. É esse amor que lhe dá a vida", completou.
Carreira 
Antero Coelho Neto nasceu em 11 de junho de 1931, era formado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC) na turma de 1957 e tinha especialização em cirurgia geral, com pós-doutorado na Universidade de Harvard, em Boston (Estados Unidos). 

Ele foi diretor do Instituto para a Qualidade de Vida desde 1993, onde prestava consultoria a empresas, universidades e ministrava cursos. Foi representante da Organização Pan-Americana da Saúde na Colômbia e Venezuela, professor da Faculdade de Medicina da UFC, Reitor da Universidade de Fortaleza (Unifor), vice-diretor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília.

Como poeta, teve mais de 43 artigos publicados em revistas especializadas no Brasil, América - Latina e Estados Unidos, além dos livros "A Cidade Azul", "Vida Longa com Qualidade II" e a trilogia "Palavras que Valeram a Pena". 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

POR: WILLIAM MOFFITT HARRIS - MEU CARO LOURINHO

MEU CARO LOURINHO



MEU CARO LOURINHO



William Moffitt Harris
Pediatra Sanitarista de Campinas-SP
Membro Titular da Sobrames-CE

MEU CARO LOURINHO

Hoje estou tristonho. Meditava sobre o encontro de alguns dias atrás com um conhecido quando fomos festejar a entrada do Ano Novo na casa de uma das filhas. Fazia anos que não nos víamos. Relembramos o episódio em que ele salvou a vida daquele que se tornaria nosso fiel amigo e companheiro por quase duas décadas. Pegara uma escada e com um pano de chão resgatou o papagaio (Amazona aestiva, família Psittacidae) enquanto enxotava a molecada que apedrejava e atirava pedaços de pau para acertá-lo, por pura maldade pueril. Ele sabia que gostávamos muito de animais e logo nos trouxe o lourinho que aparentemente já havia anteriormente habitado a casa de alguma família, pois não se assustou com a gente e piava. Afeiçoou-se logo pela Ana Lúcia, nossa filha mais velha, que o deitava de costas em seu colo e lhe coçava a barriga coisa que eu não conseguia fazer. Era uma ave muito bonita e imponente quando nos fitava. Acima do bico tinha uma pequena mancha azulada fazendo divisa com outra amarelada entre os olhos. Nos “ombros” havia pequenas manchas avermelhadas.
Não possuíamos gaiola e a Maria Lúcia se recusava a prendê-lo num espaço reduzido. Já tínhamos no fundo do quintal um viveiro com duas maritacas (Pionis maximiliani) cujo proprietário anterior havia nos solicitado cuidar enquanto viajava para a Europa por três meses. Era um casalzinho simpático e bem comportado, embora barulhento, principalmente no fim da tarde quando um bando de sua espécie sobrevoava nossa casa e atacava o topo das árvores frutíferas por uma meia hora. O instinto selvagem o chamava para se unir ao bando. Dois anos depois vieram buscá-lo, mas as maritacas já haviam ido embora, pois com a algazarra dos cachorros, o viveiro tombou e o telhado abriu.
Estava já escurecendo e o soltamos na sala de jantar tomando o cuidado de fechar janelas e portas. Encharcamos um pedacinho de pão com café numa tigelinha que largamos em cima de um etajér. Não fez cerimônia e logo foi jantar.
Deixamos uma lâmpada acesa e fomos dormir.
Voava de ca pra lá e de lá pra cá parando nas arandelas para descansar, deixando ali e acolá seus dejetos esporádicos, acertando de quando em vez a mesa de jantar enquanto tomávamos nossas refeições. Coloquei uma tela na janela grande que dava para o corredor lateral da casa e fui a uma loja especializada em animais para comprar um poleiro apropriado, mas cujo pau tive logo de trocar por um pedaço de cabo de enxada feito de madeira bem mais dura e amarga. Afiava o bico, no suporte de madeira de pinho até desgastar as pontas com a inevitável queda que o assustara bastante algumas semanas depois.
Após alguns dias notamos que as lâmpadas das arandelas, que continham meia dúzia cada, estavam misteriosamente se apagando e num exame mais minucioso verificamos que o lourinho roía a fiação. Subi no forro e soltei os ferros que prendiam as arandelas baixando-as pelos fios elétricos até sentir que estavam no chão da sala. Levei horas, sentado no chão, para trocar todos os fios, desde os soquetes até todo o percurso pela corrente que descia do teto até as arandelas. Havia comprado dez metros de fio coberto com uma grossa capa de borracha preta que me deu trabalho para descascar. Tomamos o cuidado de esmagar alguns “dedos de moça”, a pimenta mais ardida que conhecíamos por estas paragens e esfregamos a papa por toda a fiação. O lourinho, trepado numa cadeira cujo assento estava protegido com um plástico, me olhava com curiosidade, piando o tempo todo. Uma vez tudo restabelecido e o chão varrido, coloquei o louro numa das arandelas.
Foi a conta! Neófitos em termos de papagaios, dando apenas frutas e sementes de girassol para as maritacas, não tínhamos a menor ideia do que estava para acontecer. O bicho atacou de vez a fiação, roendo a borracha impregnada com a pimenta, saboreando e grunhindo de satisfação. Surpreendido, apanhei uma pimenta ainda inteira e a ofereci ao louro. Agarrou-a com vigor e comeu quase tudo na hora!
Decidimos terminar logo as instalações planejadas lá fora e mesmo na chuva esticamos o arame cujo rolo havia também comprado com o poleiro. A base seria o poleiro dependurado num gancho na área de entrada principal da casa. Achávamos que esta deveria ser a forma dele poder se abrigar da chuva. Outro erro! Adorava ficar na chuva, esticando e molhando suas azas, assobiando e se chacoalhando. Mesmo assim eu, ou quem estivesse aqui em casa, o recolhia quando houvesse um temporal com raios. Devido à presença de uma subestação de força do outro lado de nossa rua, somos brindados ocasionalmente com um número enorme de raios e trovões.
Da base saiu um arame que ia de encontro a outro principal que atravessava longitudinalmente nosso gramado ao qual, em ângulo reto, vinha de encontro um terceiro que ficava paralelo com o terraço / garagem. Viveu felicíssimo conosco por mais de quinze anos, manifestando sua adoração por determinados tipos de música que eu colocava na vitrola ou na TV. Dançava e assobiava, acompanhando o ritmo. Impôs logo respeito à matilha que tínhamos aqui em casa que, então, não mais o amolava. Um dos filhotes levou uma bela bicada na ponta do focinho e saiu gritando de dor. Subia e descia das árvores e se escondia na folhagem mais densa das pitangueiras, uvaias, azevinho (Ilex aquifolium), limoeiros, do manacá-de-jardim (Brunfelsia calycina floribunda), quando percebia algum gavião-peneira nos sobrevoando em busca de presas fáceis. O que ele não sabia é que a mancha amarelada que lhe atravessava a testa entre os olhos poderia muito bem traí-lo ao mexer a cabeça para mirar o gavião.
De noitinha o chamava e apanhava-o com minha bengala. Gostava do meu jeito de colocá-lo no poleiro e levá-lo para dentro. Não achávamos prudente deixá-lo no escuro lá fora. Numa mesa reservado para ele, ficava um prato de latão de aproximadamente um metro de diâmetro com bordas elevadas de dois centímetros de altura. Havia despencado com uma forte ventania do tambor do nosso aquecedor solar. Retirávamos a plataforma do seu poleiro para lavar enquanto, avidamente, ia comendo sua ração e bebendo água. Insistia em mostrar para a gente como fazia ao mergulhar parte da ração na água. Muito raramente descia do seu poleiro para olhar de perto o que a Maria Lúcia estava bordando ou tricoteando. Uma vez catou a bola de lã e se enroscou tal qual fazem os gatos de estimação.
Num dos arames coloquei uma balancinha que ele demorou para aceitar, mais a tratando como uma intrusa. Com o tempo se equilibrava e batendo as asas rodopiava em torno do arame e cantarolava em sua própria linguagem, principalmente ao som de marchas que tocava para ele ou com o violino ou com a vitrola.
Adorava a hora do banho quando o tempo estava bom. A cada três ou quatro semanas podávamos a ponta de quatro ou cinco penas de uma das asas, eu o distraindo e o segurando e minha irmã Audrey ou a Maria Lúcia com todo o cuidado esticando a asa e efetuando a poda, num vap-vupt. O mais difícil era lhe cortar as unhas, principalmente o ”polegar” anômalo que lhe machucava e que não conseguia afiar no poleiro.
As maritacas pareciam gozar o louro durante a farra do banho que se realizava sob a torneira do jardim no quintal atrás de casa. Os cães, curiosos e atraídos pela barulheira a gente espantava com uma esguichada da torneira. Algumas vezes o lourinho  atravessava o portãozinho que dava para a horta onde mantínhamos o viveiro e ia brigar com as maritacas. Uma vez subimos rapidamente para ver o que estava acontecendo tamanha a gritaria das maritacas. Viram uma pedra andando debaixo do viveiro e, encostando numa de suas quatro pernas, balançando o conjunto. A Lolozinha, a nossa jaboti matriarca, estava catando restos alimentares caídos no gramado, além de nos livrar de caracóis, centopeias e tatuzinhos.
Bobeamos um pouco com a poda de sua asa que o impedia de voar a baixa altitude, mas a uma distância de apenas cinco ou seis metros. Em determinadas épocas do ano as penas se soltavam para dar lugar a outras mais novinhas e mais tênues. Ele mesmo as arrancava e eu preocupado, no começo, imaginando que fosse por alguma deficiência alimentar. Nosso veterinário, ao ser consultado por telefone, me assegurou da normalidade da ocorrência.
Um dia nosso vizinho, médico psicanalista, veio me avisar que o lourinho estava trepado em seu telhado desde cedo. Estava chovendo e não havia ninguém em casa. Eu tinha ido trabalhar em São Paulo e não me lembro porque nem nossa empregada, nem a Maria Lúcia estavam lá. Encostei nossa escada de pintor no muro e, levantando o poleiro para que o visse, chamei o lourinho. Hesitou uns cinco minutos, mas acabou voando para o poleiro, aparentemente com uma fome danada.
Anos depois nosso lourinho sumiu. Tivemos de nos conformar supondo que finalmente um gavião havia o pego num vôo rasante de quase duzentos quilômetros por hora. Por vários dias seguidos chamamos o lourinho em diferentes momentos do dia. Maria Lúcia ficou até rouca de tanto gritar alto, torcendo para ser ouvida.
Passado a tempestade emocional, de tanto que amávamos nosso bichinho, nossa empregada que hoje está conosco há quase trinta anos, veio nos contar, após um ano, que, na verdade, o lourinho segurando-se nos ramos da hera figueira (Ficus punila, unha-de-gato), galgou nosso muro e saltou no meio dos dois cães policiais que lá se encontravam, soltos no quintal do vizinho. Rasgaram-no em pedacinhos, em meio a pavorosos gritos de dor. Confiava nos canídeos devido a sua vivência aqui em casa.